segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A balsa



Por Amanda Horta
Deixar uma cidade traz sempre certa melancolia, como se criássemos uma sala no peito para então deixá-la vazia, no paradoxo entre o transbordar de lembrança e o poço sem fundo do desejo de mais.

A balsa que nos levaria de Ponto Chique à próxima cidade tardou quase uma hora e, na beira do rio, a espera e o silêncio foram se alargando enquanto o sol já não cravava mais o meio do dia.

Mas entre nós, a balsa, e o outro lado do rio, não tinha só o silêncio sagrado que memora a saudade: tinha também um caminhão, um gigante com tanta cerveja por cima, que foi entalar o nosso caminho.

Pesando a balsa pr’um lado, o tal caminhão cravou-se no chão, e não tinha homem, madeira ou macaco, que o fizesse entrar ou sair, e nossa balsa, grudada na margem de cá, perdeu de súbito a serventia de ponte.

E foi um “Deus-nos-acuda”: puxa o carro pra cá, pesa a balsa daqui, o dia caindo, todo mundo entalado olhando atônito o caminhão de cerveja quente – festa futura de alguém – fazer conosco este atraso de vida.

E o sol se esconde no chão, e surge a estrela Dalva, e depois de um monte de reza – e um tanto de esforço também – o caminhão solta os dentes da beira, e a balsa atravessa de novo em silêncio, deixando n’outra margem a balbúrdia da situação.

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